Euro Bento Maciel
Filho*
Certo dia, um amigo de longa data, insatisfeito com as
indevidas interferências que certas pessoas insistem em fazer na nossa vida ou
no nosso trabalho, disse a seguinte frase: “se você permitir que o camelo
coloque a cabeça dentro da barraca, ele nunca mais sairá”. Achei a frase
interessante e a guardei em minha memória, sendo certo que, às vezes, a utilizo
para justificar-me perante as pessoas quando não permito que se intrometam nos
meus afazeres, sobretudo na minha forma de trabalhar.
Pois bem, “camelos” à parte, fato é que, de uns tempos
para cá, a Proposta de Emenda Constitucional n. 37/2011, a PEC 37, vem gerando
um acalorado debate. De um lado, há aqueles que defendem a ideia de termos um
Ministério Público com poderes investigativos. De outro, temos os que creditam a
tarefa investigativa exclusivamente às polícias Federal e Civil.
A verdade é que toda essa discussão é totalmente
desnecessária. Bastaria que as partes envolvidas fizessem uma leitura
desapaixonada dos artigos 144 e 129, da Constituição Federal, para que tudo
ficasse muito bem esclarecido e resolvido. Isso porque o texto constitucional,
longe de permitir interpretações dúbias ou contraditórias, foi muito claro ao
delimitar as competências funcionais tanto do Ministério Público quanto das
polícias.
De efeito, no que diz respeito aos membros do Ministério
Público, a Constituição lhes atribuiu, entre outras, a competência para “exercer
o controle externo da atividade policial” e, ainda, para “requisitar diligências
investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos
jurídicos de suas manifestações processuais”. No tocante às atribuições
específicas das polícias, a Constituição as incumbiu de “exercer, com
exclusividade, as funções de polícia judiciária da União” (Polícia Federal) e
desempenhar “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais,
exceto as militares” (polícias civis dos Estados).
Efetivamente, por mais que se leia e analise o texto
constitucional, não será possível encontrar, em artigo algum, qualquer
“permissão” para que o Ministério Público atue como órgão investigador. Essa
tarefa é, e sempre foi, exclusiva das polícias.
Apenas para que não surjam dúvidas, o constituinte, ao
conferir aos Promotores de Justiça a tarefa de “requisitar diligências
investigatórias e a instauração de inquérito policial”, não pretendeu dar-lhe o
direito de investigar, isto é, de promover, sozinho, o inquérito policial. O que
se concedeu ao M.P., em verdade, foi a faculdade de solicitar à autoridade
policial, nos autos de um inquérito policial formalmente instaurado pela polícia
judiciária, a produção de determinadas provas. Ou, então, requerer,
expressamente e mediante ofício, que a autoridade policial instaure um inquérito
policial para apurar um determinado fato.
Qualquer interpretação diversa que se dê à norma
constitucional, para assim tentar justificar um suposto poder investigatório do
Ministério Público, importa em verdadeira “criação” de um direito, ou seja,
claro desvirtuamento da Constituição Federal. É bem verdade que aqueles que
defendem a possibilidade de termos um Ministério Público “investigador” sugerem
que esse poder seria uma mera consequência, quase que uma “extensão”, do poder
privativo dos promotores de Justiça de “promover a ação penal pública, na forma
da lei” (artigo 129, inciso I, da Constituição Federal).
Para os adeptos daquela corrente, “quem pode o mais”
(que é, justamente, o poder de denunciar), “pode o menos” (investigar). E foi a
partir desse entendimento absolutamente desviado da expressa previsão
constitucional, que, aos poucos, Promotores de Justiça do país inteiro, tanto na
esfera federal quanto na estadual, passaram a realizar investigações (muitas
vezes, sigilosas) em seus gabinetes, do início ao fim, como se estivessem
atuando como delegados de policia.
É aqui, então, que voltamos àquela frase do camelo,
mencionada no início deste artigo. Neste caso, o “camelo” é o Ministério
Público.
Lamentavelmente, quiçá por omissão de quem deveria
coibir tal prática – o Poder Judiciário –, quiçá por puro comodismo, o
Ministério Público foi, aos poucos, distorcendo a norma constitucional para
assim criar uma “incumbência” que jamais lhe pertenceu. A ideia de que “quem
pode o mais, pode o menos” (teoria dos poderes implícitos) não se aplica ao
caso, vez que, como já dito retro, o legislador constituinte, sabiamente,
definiu explicitamente a competência de cada órgão, tudo de forma a impedir que
um usurpasse o poder do outro. O cerne do debate não está em tentar justificar o
que a lei constitucional não diz, mas, sim, em entender que há uma clara
separação de competências entre o Ministério Público e as polícias. E é até
salutar que assim seja.
Sob o ponto de vista prático, admitir o poder
investigatório do Ministério Público implicaria reconhecer que um mesmo órgão
(senão, a mesma pessoa) investigue e denuncie. Ora, que imparcialidade se pode
esperar daquele que investiga para si próprio? Como conceber que um mesmo
promotor de Justiça promova a investigação, segundo as suas manias, ideias e
“achismos”, para depois “promover a ação penal pública”?
Dentro desse contexto, a PEC 37, que seria totalmente
desnecessária se a Constituição Federal fosse fielmente seguida, vem em boa
hora. É bom que se diga, desde já, que a proposta, maldosamente chamada de “PEC
da impunidade” por aqueles que defendem o (abusivo) poder investigatório do MP,
visa, apenas, recolocar as coisas nos seus devidos lugares. De qualquer forma, é
certo, porém, que, se aprovada, será importante para ao menos tirarmos o camelo
da barraca, definitivamente.
* Euro Bento
Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP e sócio
do escritório Euro Filho Advogados Associados –
eurofilho@eurofilho.adv.br
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