quarta-feira, 19 de junho de 2013

A PEC 37 e a tristeza do camelo



Euro Bento Maciel Filho*

Certo dia, um amigo de longa data, insatisfeito com as indevidas interferências que certas pessoas insistem em fazer na nossa vida ou no nosso trabalho, disse a seguinte frase: “se você permitir que o camelo coloque a cabeça dentro da barraca, ele nunca mais sairá”. Achei a frase interessante e a guardei em minha memória, sendo certo que, às vezes, a utilizo para justificar-me perante as pessoas quando não permito que se intrometam nos meus afazeres, sobretudo na minha forma de trabalhar.

Pois bem, “camelos” à parte, fato é que, de uns tempos para cá, a Proposta de Emenda Constitucional n. 37/2011, a PEC 37, vem gerando um acalorado debate. De um lado, há aqueles que defendem a ideia de termos um Ministério Público com poderes investigativos. De outro, temos os que creditam a tarefa investigativa exclusivamente às polícias Federal e Civil.

A verdade é que toda essa discussão é totalmente desnecessária. Bastaria que as partes envolvidas fizessem uma leitura desapaixonada dos artigos 144 e 129, da Constituição Federal, para que tudo ficasse muito bem esclarecido e resolvido. Isso porque o texto constitucional, longe de permitir interpretações dúbias ou contraditórias, foi muito claro ao delimitar as competências funcionais tanto do Ministério Público quanto das polícias.

De efeito, no que diz respeito aos membros do Ministério Público, a Constituição lhes atribuiu, entre outras, a competência para “exercer o controle externo da atividade policial” e, ainda, para “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”. No tocante às atribuições específicas das polícias, a Constituição as incumbiu de “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União” (Polícia Federal) e desempenhar “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares” (polícias civis dos Estados).

Efetivamente, por mais que se leia e analise o texto constitucional, não será possível encontrar, em artigo algum, qualquer “permissão” para que o Ministério Público atue como órgão investigador. Essa tarefa é, e sempre foi, exclusiva das polícias.

Apenas para que não surjam dúvidas, o constituinte, ao conferir aos Promotores de Justiça a tarefa de “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”, não pretendeu dar-lhe o direito de investigar, isto é, de promover, sozinho, o inquérito policial. O que se concedeu ao M.P., em verdade, foi a faculdade de solicitar à autoridade policial, nos autos de um inquérito policial formalmente instaurado pela polícia judiciária, a produção de determinadas provas. Ou, então, requerer, expressamente e mediante ofício, que a autoridade policial instaure um inquérito policial para apurar um determinado fato.

Qualquer interpretação diversa que se dê à norma constitucional, para assim tentar justificar um suposto poder investigatório do Ministério Público, importa em verdadeira “criação” de um direito, ou seja, claro desvirtuamento da Constituição Federal. É bem verdade que aqueles que defendem a possibilidade de termos um Ministério Público “investigador” sugerem que esse poder seria uma mera consequência, quase que uma “extensão”, do poder privativo dos promotores de Justiça de “promover a ação penal pública, na forma da lei” (artigo 129, inciso I, da Constituição Federal).

Para os adeptos daquela corrente, “quem pode o mais” (que é, justamente, o poder de denunciar), “pode o menos” (investigar). E foi a partir desse entendimento absolutamente desviado da expressa previsão constitucional, que, aos poucos, Promotores de Justiça do país inteiro, tanto na esfera federal quanto na estadual, passaram a realizar investigações (muitas vezes, sigilosas) em seus gabinetes, do início ao fim, como se estivessem atuando como delegados de policia.

É aqui, então, que voltamos àquela frase do camelo, mencionada no início deste artigo. Neste caso, o “camelo” é o Ministério Público.

Lamentavelmente, quiçá por omissão de quem deveria coibir tal prática – o Poder Judiciário –, quiçá por puro comodismo, o Ministério Público foi, aos poucos, distorcendo a norma constitucional para assim criar uma “incumbência” que jamais lhe pertenceu. A ideia de que “quem pode o mais, pode o menos” (teoria dos poderes implícitos) não se aplica ao caso, vez que, como já dito retro, o legislador constituinte, sabiamente, definiu explicitamente a competência de cada órgão, tudo de forma a impedir que um usurpasse o poder do outro. O cerne do debate não está em tentar justificar o que a lei constitucional não diz, mas, sim, em entender que há uma clara separação de competências entre o Ministério Público e as polícias. E é até salutar que assim seja.

Sob o ponto de vista prático, admitir o poder investigatório do Ministério Público implicaria reconhecer que um mesmo órgão (senão, a mesma pessoa) investigue e denuncie. Ora, que imparcialidade se pode esperar daquele que investiga para si próprio? Como conceber que um mesmo promotor de Justiça promova a investigação, segundo as suas manias, ideias e “achismos”, para depois “promover a ação penal pública”?

Dentro desse contexto, a PEC 37, que seria totalmente desnecessária se a Constituição Federal fosse fielmente seguida, vem em boa hora. É bom que se diga, desde já, que a proposta, maldosamente chamada de “PEC da impunidade” por aqueles que defendem o (abusivo) poder investigatório do MP, visa, apenas, recolocar as coisas nos seus devidos lugares. De qualquer forma, é certo, porém, que, se aprovada, será importante para ao menos tirarmos o camelo da barraca, definitivamente.

* Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados – eurofilho@eurofilho.adv.br

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