Universidade
Estadual Paulista
Redes sociais tornaram-se
sujeitos políticos
Desafio do MPL é
definir rumos sem perder fôlego de articulação, avalia cientista
político
O MPL (Movimento Passe Livre) realizou a primeira
manifestação contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo no dia 6 de junho
e poucas pessoas acreditaram na ação. Nos dias seguintes, o movimento foi
ganhando adeptos até culminar, no dia 13, no grande confronto entre
manifestantes de policiais. Desde então, tem mobilizados pessoas em diversas
capitais brasileiras e está repercutindo nos ambientes políticos e no
exterior.
Nesta entrevista, o cientista político e diretor do
Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp
(Ippri/Unesp), Marco Aurélio Nogueira, tenta compreender uma agitação que
cresceu bem mais do que se imaginava e exprime uma insatisfação social difusa
que aproxima e coliga cidadãos descontentes. Nogueira é também colunista do
Jornal O Estado de S.Paulo e autor do Blog Possibilidades da
Política.
P - O Passe Livre articula o movimento pelas mídias
sociais e mobiliza um punhado de gente, com razões diversas, nas avenidas e
praças contra as diversas instâncias de governo. Que reflexão o senhor faz sobre
essa mudança no fazer político?
Nogueira -
O movimento passa ao largo de partidos e organizações. Algumas micro
organizações tentam pegar carona, mas são ignoradas enquanto pretensão de
comando e direcionamento. As ações se põem deliberadamente na “borda" daquilo
que está organizado e se proclamam multicêntricas, horizontais, plurais, sem
programas ou agendas claramente compostas. Seus inimigos são o Estado, os
governos, os partidos, o parlamento, a burocracia, a autoridade, as hierarquias
e "tudo isso que está aí". É um modo de fazer política que se alimenta da
inoperância e da crise da democracia representativa. Quanto mais o sistema
político fica paralisado, não se reforma e se deforma, quanto mais os
parlamentares e os governantes insistem numa agenda refratária às expectativas
sociais, mais a distância entre eles e a sociedade aumenta, impulsionando as
pessoas para as praças. A mobilização tem a cara da sociedade
atual superconectada, rápida, impregnada de informações, narcisista e niilista,
muito fragmentada e diversificada, cheia de problemas, injustiças e postulações
de direitos, etc.) e encontra seu maior aliado nas mídias sociais. Ganha fôlego
e se estrutura pelos espaços virtuais, saindo deles para as ruas. Desse modo, as
próprias redes tornam-se sujeitos políticos. Deriva disso a rapidez com que o
movimento encorpou, atraindo gente que num primeiro momento não havia se
sensibilizado com suas propostas.
P - Uma avaliação apressada sobre o que agita o MPL
("tarifa zero") nos faz pensar em algo irreal, afinal, nossa sociedade é
capitalista. Acredita que o MPL está tentando alertar para uma agenda de governo
na contra-mão dos anseios sociais?
Nogueira -
Não dá para saber o que o MPL está tentando falar, porque ele mesmo se apresenta
como um movimento sem líderes, sem esquemas preconcebidos de atuação e sem
agendas rígidas. Ele é um "vir-a-ser", algo em processo permanente de invenção.
Pode estar, sim, verbalizando uma insatisfação com o modo como os governos
buscam definir e levar à prática suas agendas, indicando que talvez essas
agendas não atendam a todas as expectativas sociais. Mas é importante perceber
que parte das expectativas é atendida, seja em termos de melhoria na redução das
desigualdades (bolsa-família, por exemplo), seja em termos de certas
providências econômicas ou financeiras que protegem classes médias e setores
mais ricos. O problema, portanto, não é que os governos "não fazem nada": eles
fazem, só que não conseguem agradar a maioria e muito menos a todos. E não
conseguem simplesmente porque não têm força para fazê-lo. As redes sociais
captam, reverberam e repercutem esse dado.
Agora, pensar em tarifa zero numa sociedade
capitalista não chega a ser um despropósito, ou uma proposta irreal. É algo,
porém, de difícil realização e de impossível realização no curto ou médio prazo,
pois depende de um pacto social, ou seja, de um entendimento coletivo de que o
transporte deve ser inteiramente custeado pelos impostos. Passa por uma
discussão complicada sobre tributação e financiamento. Não é algo que o prefeito
possa simplesmente decretar. Sequer a suspensão do aumento da tarifa é uma
decisão simples. Depende de muitas coisas, ainda que possa provisoriamente ser
feita.
Esse talvez seja o maior desafio do movimento: o
que fazer a partir do momento em que se constatar que decisões de governo são
mais complexas, lentas e difíceis do que imaginam as ruas? O que se pensará em
fazer, caso o prefeito de São Paulo demonstre que a tarifa não pode ser reduzida
e consiga ser persuasivo nessa demonstração? Como não é possível permanecer em
mobilização indefinidamente, o movimento terá de definir um novo rumo e recompor
seus slogans, de modo a obter algum resultado positivo. Sem isso, correrá o
risco de se evaporar. Algumas lideranças, mesmo que a contragosto, terão de
assumir a responsabilidade de participar de negociações e definir os próximos
passos. E isso não é algo que pareça inscrito na natureza, na lógica do
movimento.
P - O movimento em si é um fato que está se
fortalecendo em um momento de queda de popularidade da presidente, da descrença
do cidadão na política e nas instituições, e em uma época em que o país está em
evidência no exterior por conta de duas grandes paixões mundiais -- futebol e
religião. O que pensa sobre essa junção de fatos?
Nogueira -
Não se tratou de mera coincidência. Não dá para afirmar que se planejou isso,
pois o movimento não se caracteriza pelo planejamento. Mas a dinâmica social
sugeria que seria possível obter maior visibilidade e audiência num momento em
que o mundo estivesse olhando para o país. É um fato importante, porque a
mobilização precisa dessa audiência: o espetáculo e a cobertura midiática são
seu elixir, a condição de seu sucesso. Há toda uma operação governamental e
empresarial montada para fazer dos eventos esportivos uma plataforma de
lançamento do "Brasil do século XXI". E muita gente percebe que isso é oco, não
vai acontecer, que os gigantescos recursos gastos não darão retorno, que se está
inflando uma balão que não tem como alçar voo. O lance do passe livre, da tarifa
zero ou do aumento da tarifa foi a faísca que fez com que a insatisfação difusa
adquirisse corpo.
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